Carta para São Paulo | Marina Silva

Marina
Silva1818

Deputada Federal

São Paulo renova minhas esperanças de que a política, compreendida como serviço à coletividade, possa recuperar sua potência transformadora, deixar de ser produtora de entropia e disseminadora de ilusões, e ser um diálogo em que todos e todas tenham direito à palavra.

Carta de São Paulo


DISRUPÇÃO
s.f.
ato ou efeito de romper(-se); ruptura, fratura, dirupção 1. interrupção do curso normal de um processo
2. eletr restabelecimento brusco de corrente elétrica, causando faíscas e intenso gasto da energia acumulada
3. hidr formação de turbilhões em torno de um obstáculo ao escoamento de fluidos; deflexão

ETIMOLOGIA
lat. disruptĭo,ōnis ou diruptĭo,ōnis ‘fratura, quebra’

O curso normal das coisas nem sempre é o mais desejável. Já faz algum tempo que recebemos alertas, dos cientistas, dos artistas, dos ambientalistas, dos indígenas, das mulheres, dos pretos, de todas as comunidades que sempre foram tratadas como “minorias” ou “periferias”, que resistiam e insistiam em mostrar que nossa civilização precisava mudar seu curso, sob pena de entrar numa crise total e definitiva. Alinhei-me com esses sonhadores e lutadores desde muito jovem, quando enfrentei, ao lado de Chico Mendes, os jagunços do desmatamento na Amazônia e coloquei-me definitivamente a serviço de uma causa, um ideal de mudança, o sonho de uma sociedade sustentável, justa e democrática.

Com muito sangue, suor e lágrimas, obtivemos avanços. Mas constato hoje que, infelizmente, a barbárie predominou em momentos decisivos e empurrou nosso país para o centro da crise que faz estremecer a civilização. Depois de 2018, com a eleição de Bolsonaro para Presidente e de vários governos estaduais alinhados com seu delírio autoritário e destrutivo, o Brasil vive em permanente catástrofe, empurrado para trás, paralisado no atraso social, cultural, educacional, científico, econômico, político e ambiental. E mais: romperam-se as barragens que represavam a violência e o ódio acumulados em 5 séculos e vemos o esgarçamento -por vezes a ruptura- do laço social, nos mais básicos níveis de entendimento e solidariedade entre as pessoas, até mesmo no interior das famílias.

Podemos dizer que, mais que um retrocesso, nosso país experimenta uma regressão. E é do centro do sistema político que vem a diretriz para a produção constante dessa desarmonia. Já existiam antes as tentativas de desacreditar e desmontar as conquistas democráticas e republicanas inscritas na Constituição de 1988, mas a ascensão de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto entronizou a mentalidade totalitária no mais alto escalão institucional do país. Desde então, a República tem um governo anti-republicano que se serve da democracia para destruir a democracia. Ao mesmo tempo, apoiando-se na parcela mais fisiológica e patrimonialista da chamada “classe política”, o governo também a apoia e lhe distribui suas benesses. Com o controle de órgãos e ministérios estratégicos, e sendo majoritário no parlamento, o Centrão transformou a Câmara dos Deputados numa máquina de fazer dinheiro e suas comissões em patrulhas empenhadas em coibir ou destruir qualquer iniciativa da sociedade de ampliar a democracia e de vigiar o comportamento de seus representantes eleitos ou gestores nomeados, que ficam livres para satisfazer seus interesses privados e dos grupos específicos que querem favorecer.

Enquanto vemos e sofremos com essa degradação da política no Brasil, comandada pela coalização entre bolsonarismo e Centrão, vemos processo diferente ocorrer no resto do mundo, especialmente nas principais economias e em nossos vizinhos como Chile e Uruguai, que se recuperam dos surtos ultra-liberais e autoritários e refazem suas agendas para enfrentar os dilemas deste século, notadamente a desigualdade social e as mudanças climáticas provocadas pela elevação da temperatura média do planeta. Na contramão da evolução, o sistema político brasileiro, sob o atual comando, além de alinhar nosso país com os grupos e governos mais autoritários e corruptos, nos coloca como párias sociais e ambientais. Ao invés de iniciativas para aprimorar a qualidade do relacionamento das pessoas entre si, promove-se o comércio de armas e da violência; ao invés do respeito, o preconceito; em lugar do estímulo à criatividade, os ataques à arte e à cultura; no lugar da ciência e da expansão da base tecnológica, o negacionismo e o sufocamento da pesquisa e dos pesquisadores; ao invés da inovação e da mudança dos processos produtivos para formas mais sustentáveis, o retorno às formas mais devastadoras de exploração e saque dos recursos e do patrimônio natural.

Não tenho dúvidas de que a derrota de Bolsonaro nas eleições de outubro é uma necessidade básica, para nossa sobrevivência como país civilizado e democrático. Pesa sobre todos nós a responsabilidade de promover uma convergência das forças democráticas não apenas para conquistar a vitória nas eleições mas para garantir que essa vitória seja respeitada, impedindo qualquer tentativa de ruptura institucional ou social que a ameace. O que teremos, em outubro, não é um processo eleitoral comum, mas uma estreita passagem por onde faremos uma perigosa travessia. Porque não se trata de derrotar um partido, que disputa dentro das regras e leis republicanas, mas uma força social e política que se move por suas próprias regras, contamina o ambiente e o processo da disputa com a produção industrial da mentira e tem na violência sua forma predileta de expressão. Uma força que articula milícias, facções, grupos, castas, oligarquias e organizações -muitas delas armadas e incrustadas nas instituições-  e que dispõe de muito dinheiro para arrebanhar milhões de pessoas.

Por isso tenho insistido, e mais uma vez repito, que não basta derrotar Bolsonaro; é preciso superar o bolsonarismo, que se tornou a convergência das forças antidemocráticas e a expressão dos vícios e doenças que se acumularam desde os tempos coloniais e agravaram-se, nas últimas décadas, com o predomínio de um crescimento econômico artificialmente acelerado, baseado na destruição da natureza e na degradação das condições de vida da maioria da população cada vez mais  concentrada nas periferias das grandes cidades. A pandemia, o desmonte das políticas públicas e o desastroso gerenciamento macroeconômico revelaram claramente que o modelo econômico brasileiro permanece insustentável e que voltou à antiga fórmula: os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres.

A superação do bolsonarismo não se dará com uma vitória meramente política, mas exigirá uma disrupção criativa que tire o país da repetição, da mesmice de um sistema estagnado, das polarizações sem conteúdo, do aparelhamento das instituições. Por isso, a convergência das forças democráticas não é apenas um alinhamento eleitoral, mas deve se dar em todas as frentes criativas e inovadoras do país, com o objetivo de refazer o laço social, recuperar nossa autoestima como nação e possibilitar que as próximas gerações possam encontrar caminhos evolutivos para a civilização sem o peso e as amarras da regressão que hoje vivemos.

Portanto, nossa tarefa primordial, antes mesmo de desenvolvermos os pontos específicos dos programas de governo, é pactuar uma base política e institucional democrática, recompor as funções públicas do Estado, recuperar a governança perdida. É pré-requisito essencial reestruturar e ampliar a democracia que começamos a construir após a Constituição de 88 quando voltamos a ter eleições diretas regulares, em todos os níveis.

Por isso, a importância de eleger outro Presidente da República é inseparável da necessidade de renovar o Congresso Nacional e livrar o poder legislativo do domínio dos grupos e bancadas que caracterizam o Centrão. Ao invés de ser o vau onde passa a boiada, o Congresso Nacional deve ser local de representação da pluralidade e da rica diversidade do povo brasileiro, resiliente na luta por seus direitos, no zelo pela liberdade, no anseio de justiça social e no amor por seu patrimônio natural e cultural. Um Congresso voltado a cumprir sua responsabilidade constitucional de zelar para que o regramento jurídico do país seja orientado para construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).

A diminuição da presença das bancadas que se alimentam do Orçamento Secreto, especialmente na Câmara dos Deputados, será essencial para que as difíceis escolhas que deverão ser feitas, em um contexto de deterioração econômica e política, não alimentem instabilidades e sejam compreendidas pelos eleitores como necessárias para a redução das desigualdades socioeconômicas, do desemprego e da fome. Ao mesmo tempo, teremos que construir as bases sólidas que nos permitam enraizar, em definitivo, a cultura democrática (para impedir que arrivistas golpistas possam se atrever a retornar ao palco político) e estabelecer as condições para que o Brasil se alinhe à agenda do desenvolvimento sustentável. É lamentável que, na segunda década do século 21, diante de desafios de dimensões globais, ainda tenhamos que refazer lições tão básicas. E talvez seja esta nossa última chance de escapar a um prolongado período de barbárie, com severa degradação das condições ambientais e sociais de nossa existência e das futuras gerações.

A história nos ensina que transformações efetivas e profundas só ocorrem quando as forças produtivas e reprodutivas da vida social se renovam. Por isso, mesmo tendo que retornar a um pacto social e político em nível básico, em modo de sobrevivência, temos que pedir emprestada a energia das novas gerações para apressar algumas disrupções que possibilitam o futuro. Restaurar a democracia, sim, mas introduzindo as novas tecnologias que proporcionam maior participação das pessoas nas decisões públicas. Erradicar a fome, sim, mas inovando nos processos produtivos para reduzir as emissões de carbono. Diminuir as desigualdades sociais, sim, mas criando políticas de inclusão que distribuam mais que a renda, a cidadania. Renovar a política, sim, mas reconhecendo o poder das mulheres, negros, indígenas e todas as comunidades que fizeram da Cultura sua trincheira de luta e via de afirmação. Um novo pacto político e social no Brasil não pode ser um meio de elidir e conter a mudança, mas de dar-lhe passagem. Para isso, temos que compreender que só as periferias podem derrotar o Centrão.

Eis aqui a importância fundamental dos milhões de brasileiros e brasileiras que habitam o estado de São Paulo. Paulistas (por nascimento ou por afeto) são os que vivem num dos espaços de maior densidade e intensidade econômica e cultural do mundo contemporâneo. Vivem sob o maior impacto das catástrofes ambientais, da crise econômica, da comoção social; e por estarem no coração do problema, são portadores das soluções. São Paulo é muito mais do que uma “selva de pedra”. É um conjunto de ecossistemas produzidos pela mais rica variedade humana, onde se destaca a força da economia criativa, do empreendedorismo de jovens e mulheres das periferias, das suas startups e das empresas atentas a promover impacto socioambiental positivo juntamente com os ganhos de seus negócios. A imensa capacidade de produção científica de suas universidades e de seus centros de pesquisa, resistindo bravamente aos ataques dos governos negacionistas, tornam-se vetores determinantes para o avanço rumo à economia de baixo carbono. A grande variedade cultural, as inúmeras brasilidades e humanidades reunidas em São Paulo, fornecem as novas visões de mundo, pensamentos, linguagens, para projetar e produzir o futuro.

O poderio inovador e disruptor da sociedade paulista é capaz de oferecer respostas às crises climática, social, econômica e política do Brasil. Não falta potencial para contribuir com soluções para preservar a Amazônia, a Mata Atlântica e demais biomas, melhorar consideravelmente a qualidade do nosso ensino, reduzir os abismos sociais, fortalecer o SUS, valorizar a diversidade e aliar na mesma equação economia e ecologia. Com certeza, isso servirá também para impulsionar as áreas empobrecidas do Brasil a atingirem níveis maiores de prosperidade. Tudo isso constatei pessoalmente, em todas as vezes que morei ou permaneci por mais tempo em São Paulo, especialmente depois de 2010, nas 3 campanhas à Presidência da República em que a capital paulista foi a sede e centro estratégico. São Paulo renova minhas esperanças de que a política – compreendida como serviço à coletividade – possa recuperar sua potência transformadora, possa deixar de ser produtora de entropia e disseminadora de ilusões, possa ser um diálogo em que todos e todas tenham direito à palavra.

Orientada por essas reflexões, a Rede Sustentabilidade, partido ao qual sou filiada, propôs que me candidatasse a deputada federal por São Paulo. A Rede e eu entendemos que, para superar a herança trágica que será deixada pela passagem do bolsonarismo, as experiências desenvolvidas em São Paulo precisam ter expressão política nacional e internacional. As forças criativas desenvolvidas no trabalho, na resistência, na luta, devem levar sua força para o Poder Legislativo do Brasil e se contrapor aos arranjos e a conjunção de interesses atrasados que hoje o dominam. É hora de abrir as portas do Congresso para que uma força realmente nova, forjada no esforço diário de gente de todos os tipos, comece a exercer o seu papel de colocar o país no rumo de um processo civilizatório saudável e da busca de um desenvolvimento avançado.

Venho do Acre. Sou mulher, preta, filha de seringueiros, passei minha infância e adolescência dentro da floresta amazônica, me alfabetizei pelo Mobral quando tinha 16 anos (hoje, estou com 64). Conheço as dores da fome, o risco de morrer à espera de um leito de hospital público, a perda de tudo numa enchente, vivendo na periferia de Rio Branco. Sei o que é enfrentar preconceito por ser mulher preta e evangélica e de me atrever a questionar o status quo da política e os abusos das elites econômicas. Também conheço a delícia de ter filhos amados, família grande, amigos verdadeiros, e inúmeras companhias nas lutas em defesa da vida no planeta, parceiros e parceiras que me ajudaram a ter reconhecimento e valorização desses ideais em vários lugares do mundo, de organizações e instituições da sociedade internacional. Muito me honra ter a confiança dos povos tradicionais do Brasil e ser por eles respeitada. E me orgulho de ter liderado o trabalho que resultou na maior redução da taxa de desmatamento da história da Amazônia e as maiores operações já registradas contra grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais, que resultaram na prisão de mais de 700 pessoas e na desarticulação das organizações criminosas que devastavam a floresta.

É essa trajetória de vida que me permitiu ser candidata à Presidência da República em 2010, 2014 e 2018, ministra do Meio Ambiente (2003-2008), senadora da República (1995-2011) e deputada estadual (1991-1994) pelo Acre, depois de ter começado como vereadora em Rio Branco (1988-1990), levando para a política institucional minha luta em companhia dos povos da floresta e da cidade. São 37 anos de vida pública absolutamente limpa.

É essa trajetória que ofereço a São Paulo, para contribuir com o potencial único, inovador e disruptor da sociedade paulista, suas comunidades, organizações e instituições. Quero ajudar a produzir as transformações pelas quais o Brasil precisa passar para que as próximas gerações não sejam punidas pelas consequências dos graves erros históricos cometidos pelas elites políticas e econômicas, especialmente nas últimas décadas. Tenho alertado, em todos esses anos, para os muitos equívocos que foram se acumulando entre nossos partidos e lideranças políticas, mesmo aqueles que mais contribuíram para a retomada da democracia, após 1985. A meu ver, um dos maiores equívocos foi a reprodução da estrutura hierárquica do sistema partidário e oligárquico, interrompendo a abertura dos espaços políticos para as novas gerações e para as comunidades. Outro grande equívoco, foi não ter compreendido que a questão ambiental e a sustentabilidade eram estrategicamente tão importantes quanto as questões sociais e econômicas, às quais estão profundamente ligadas. Esse atraso na atualização do ideário e na renovação dos quadros políticos resultou em desvios ainda mais graves, de natureza ética, que resultaram numa crescente descrença com a política e até com a democracia, levando ao crescimento das forças reacionárias que rearticularam e fortaleceram seu projeto de poder.

Fiz minhas críticas e mensagens de alerta, em todo esse tempo, sem jamais me afastar, por um milímetro que fosse, do campo da democracia. Mantive também minhas convicções e definições programáticas sempre dentro de uma perspectiva progressista. As siglas partidárias a que me associei, PT, PV e PSB, esta última já como fundadora da Rede Sustentabilidade, são todas fundamentalmente democráticas e progressistas em seus ideários políticos e programas sociais. E não hesitei, quando estive em funções públicas, em relacionar-me politicamente de forma pública e transparente com todos os partidos e lideranças políticas para aprovar projetos que promovessem a justiça social e a sustentabilidade ambiental.

Por isso, alerto mais uma vez para a urgência e atualidade de um entendimento com base da democracia e na sustentabilidade. Dirijo-me agora ao povo do Estado de São Paulo, que tem ampla capacidade de liderar o Brasil, mas tenho consciência de que as diretrizes e propostas que afirmo não têm apenas importância local; na verdade, fazem parte de uma agenda contemporânea que responde aos desafios de toda a humanidade.

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